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Conselheiro do CAU/BA, Nivaldo de Andrade, lamenta a morte do arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé

Foto dos arquitetos Nivaldo de Andrade e LeléCaros colegas,

Estou no exterior, e só há pouco soube do falecimento daquele que, pra mim, foi o maior arquiteto brasileiro. Sinto uma mistura de tristeza e indignação.

Nos últimos anos, Lelé lutou bravamente contra um câncer e contra uma falta de compreensão, por parte dos gestores públicos brasileiros, da importância da sua obra e mesmo do que é a arquitetura e qual seu papel para a sociedade. Investiu o que tinha e o que não tinha na criação do Instituto Habitat, por acreditar que “projeto” é apenas papel pintado e que o que importa mesmo é a obra construída a partir do projeto. Foi enrolado por gestores públicos, que lhe acenaram com projetos que nunca se concretizaram. O maior exemplo foram os dois projetos que desenvolveu para o Minha Casa, Minha Vida, a pedido da Presidenta Dilma, pelo qual nunca recebeu um centavo e que, apesar de melhor e mais econômico que o padrão que vem sendo adotado no Programa MCMV, não foi adiante devido ao lobby das construtoras e à falta de coragem do Governo. Sua última batalha, paralela ao do câncer, foi contra um empreiteiro muito poderoso e influente que ganhou a licitação para construir um projeto dele (que tinha mais de mil pranchas!) e queria mudar as especificações. Como Lelé não aceitou, o empreiteiro o vinha perseguindo, usando a máquina do Estado para criar toda sorte de problemas.

Desculpem o desabafo, mas o arquiteto brilhante e coerente que eu aprendi a admirar ainda nos tempos de estudante e que, depois, conhecendo-o pessoalmente, descobri ser também um homem gentil e generoso, merecia mais do que pudemos lhe oferecer. Lelé deu importantes contribuições para o Brasil mas o Brasil foi muito injusto com ele.

Choro hoje pelo arquiteto revolucionário que perdemos, pela pessoa nobre e querida que ele foi e, também, pela desvalorização da nossa profissão. Se um arquiteto do naipe de Lelé passa por situações desse tipo, que será dos demais? A vitória que tivemos com relação à vulgarização da RDC nos últimos dias é um passo importante contra esse tipo de pensamento que desvaloriza o projeto e grassa no setor público.

Uma curiosidade que dá a dimensão do respeito e admiração que Lelé incutia entre seus pares: semana passada eu estava na Costa Rica para a reunião do Comitê Executivo da FPAA e aproveitei a viagem para visitar o Instituto de Arquitectura Tropical (IAT), fundado e dirigido há 20 anos pelo premiado arquiteto Bruno Stagno. Desde a fundação do IAT, Bruno e sua esposa, a também arquiteta Jimena Ugarte, promovem encontros com arquitetos do mundo todo (da Malásia à África e Austrália) para discutir arquiteturas adequadas ao clima tropical. Um dos 40 arquitetos que eles já levaram para esses eventos foi Lelé, e quando comentei que era amigo e admirador dele, ficamos mais de uma hora falando sobre ele. Bruno e Jimena contaram que ele foi o arquiteto mais brilhante, culto e gentil que eles conheceram, e que a palestra dele, na abertura do evento, havia sido tão impressionante que Glenn Murcutt, detentor do Prêmio Pritzker e que deveria fazer uma palestra no dia seguinte, ligou desesperado para Bruno às 7 horas da manhã para perguntar o que ele poderia dizer depois da palestra de Lelé…

Para homenageá-lo, transcrevo texto que fiz para a abertura da exposição “Fábrica e Invenção: a arquitetura de Lelé”, organizada pelo Museu da Casa Brasileira e que montamos no foyer do Teatro Castro Alves, em Salvador, em 2012, para comemorar seus 80 anos:

Dizem que o bom arquiteto é aquele que busca atender às demandas da sociedade com economia de recursos e, se possível, também de tempo; em países como o nosso, com tantas carências, cabe ao arquiteto conceber e erguer equipamentos que melhorem as condições de vida de todos e, em especial, daqueles que passam por maiores dificuldades, seja pela escassez de recursos financeiros, seja por problemas de saúde.
Dizem também que o arquiteto consciente deve, em um clima tropical como o nosso, privilegiar o conforto ambiental a partir do controle da incidência direta do sol e do aproveitamento inteligente da ventilação natural. Ao arquiteto digno deste título caberia ainda compreender que o projeto não passa de um meio para atingir um fim: a edificação materializada, a obra construída, que efetivamente pode cumprir uma destinação social. Por fim, deveria o bom arquiteto buscar incessantemente a beleza, em especial na pureza da forma, na expressividade do traço e – por que não? – na concordância entre curva e reta, como bem ensinou nosso mestre maior, Oscar Niemeyer.
A produção de João Filgueiras Lima, o Lelé, é a síntese de tudo isso: preocupação social, adequação climática, compromisso ético e qualidade estética. A trajetória e a conduta profissional de Lelé demonstram, de forma paradigmática, o papel do arquiteto em agregar civilidade e urbanidade às nossas cidades, tornando-as mais humanas. Em um momento em que a arquitetura do star system internacional privilegia a estética em detrimento da ética, a obra de Lelé honra e dignifica a nossa profissão, ao conciliar ambas.

Abraços consternados,

Nivaldo de Andrade

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